A Normal

Acordou despenteada
Esmagada por um sonho ao qual não quis voltar

Deu um jeito no cabelo enquanto pensava no cardápio do café
Mas não era habituada a pensar

Mais um dia normal, fez tudo exatamente igual

Anormal que se tornara

Sonhou o dia inteiro com pessoas e lugares que nunca verá
À noite, um beijo no conjugue*
Ela teve sorte e ele não dormiu,
Então, naquela noite, sentiu algo próximo de um orgasmo
Ou algo próximo do que ela acredita ser um orgasmo

Uma noite normal, um sentimento banal
São pessoas normais
Não é isso que todos querem, afinal?

E antes de dormir lhe ocorreram pensamentos impuros
Os que não deveriam passar pela cabeça normal de mãe ou esposa
Rolou pela cama, enquanto o conjugue roncava alto

Já não é tão confortável o colchão, como era há 30 anos

Uma madrugada normal uma inquietação que se tornou rotina uma rotina que se tornou vício um vício que consumiu sua beleza sua vontade sua juventude a normal que nunca quis ser

Anormal que já foi um dia:
Flower-power, tropicália, ervas perfumando a mente

A normal que nunca quis ser:
( )

Anormal que tanto quis ser diferente

E acabou igual


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* Convencionou-se chamar o marido de conjugue, tão burocrática tornou-se a relação dos dois.

areia fina ou olhos grandes e negros


É como uma maldição
Um karma que vai me acompanhar para sempre

Não me impedirá de viver, eu sei
Mas também sei que a cada curva da vida, tua presença me faltará

E é tudo culpa dos teus olhos...

Teus olhos grandes e negros
que parecem refletir em negativo a lua cheia

Teus olhos grandes e negros
que me abriram a janela da tua alma

E me convidaram a mergulhar em cheio
na aventura que foi te conhecer

São teus olhos grandes e negros que virão à minha mente
Naquelas tardes ociosas de domingo
ou nas noites em que o sono não vem

E quando eu finalmente conseguir dormir,
brilharão em meus sonhos para me cegar

Duas luas no crepúsculo dos meus sonhos,
Teus olhos grandes e negros...

E há o teu sorriso infantil;
é nele que vou pensar quando eu quiser apenas não pensar

E há o teu nome exótico;
que virá a minha boca, quando minha boca não for tua

E há o nada
O nada é o que eu posso fazer, além de aceitar

...
Mas não pense você que tudo isto me parece ruim,
mesmo não sendo a mais confortável das condições

Tenho que admitir que me sinto orgulhoso,
pois eu sei o que é o amor, eu o reconheço

Bem diferente de você,
que o está deixando escapar entre os dedos, como areia fina

E como areia fina,
o vento sopra e leva as partículas do amor embora

Existem, porém, lugares onde toda a areia fina repousa
e são acariciadas por águas salgadas, que um dia chamaram-se lágrimas

À este lugar, os humanos deram o nome de praia...
e nas praias, os humanos que, como você, esqueceram o rosto do amor
divertem-se e celebram sua eterna falta

Dançam; como num ritual pagão, pisoteando seus próprios amores
Amores que o orgulho, a imaturidade e o idealismo deixaram escapar,

Escapar como areia fina, que escorre pelos dedos,
que voa com o vento...

Será que você não vê ou finge não ver?
Tua cegueira voluntária é digna de um estudo científico

Você, que teima em procurar nos amantes
as qualidades que faltam em ti

E eu, que atravesso teus olhos grandes e negros
e uma vez dentro de ti, encontro muito daquilo que mais gosto em mim...

...
Se eu pudesse, jogaria a areia fina
em teus olhos grandes e negros;

Não por maldade ou vingança,
e sim para te alertar que os opostos se destroem

Mas isso só o tempo vai te ensinar
E que ele seja piedoso contigo,
e
não
borre
com
águas
salgadas
o
negro
dos
teus
olhos

Pai?

8h26
O som de um serrote ao fundo o fez acordar de um delicioso sonho matinal. Indagou-se por um instante, mas não lutou contra o sono que ainda havia.
...
9h17
Marteladas fizeram-no despertar novamente. Mas deduziu que talvez ainda estivesse em sua cabeça o bate-estaca exaustivo da boate da noite passada.
...
10h30
O barulho do vidro tocando agressivamente o chão o fez pular da cama. Tentou imaginar o que seu gato vira-latas havia aprontado na cozinha desta vez. Resolveu deixar para mais tarde a apuração dos danos, afinal, era segunda-feira, seu dia de folga, e não precisava ter pressa.
...
11h45
O cheiro de peixe frito invadiu suas narinas sem pedir licença. Gostava do cheiro de peixe frito, mas não gostava do cheiro de peixe de frito desejando-lhe ‘bom dia’.
‘A vizinha prepara o almoço cedo demais’, pensou, pouco antes de voltar a dormir.
...
12h10
A vinheta grosseira do noticiário regional fez tremer as paredes do quarto. A TV estava num volume tão alto, que era possível ouvir claramente os últimos dados da pesquisa do Ibope para as eleições municipais. Assustou-se. Mas desta vez resolveu não pensar. Tinha esse direito, era segunda.
...
12h55
Uma voz conhecida falava ao telefone e parecia exageradamente equalizada por uma euforia bárbara. Desta vez levantou-se, enrolou-se no lençol e foi até a sala.

- Pai?
- Oi!
- O que você está fazendo aqui?
...
Foi assim que descobriu que seu pai havia se aposentado. Naquele momento soube que seus dias de folga jamais seriam os mesmos.

A vernissage dos corpos


O verão transborda o desejo. A estação que esquenta, que desnuda e que neutraliza o pudor, também aguça o faro, o olfato, o tato, o paladar e, principalmente, a visão. As formas estão salientes. As cores se intensificam. A sensualidade é quase corriqueira. À flor da pele estamos, ainda que longe da próxima primavera.

Ter um corpo perfeito é quase obrigação. Gabam-se alguns, lamentam-se outros. Mostram-se aqui, escondem-se acolá. Faço parte da parcela que lamenta, mas não se esconde. Se meu corpo não é perfeito em curvas e músculos, o que mais posso fazer além de admirar os corpos que o são, entre um gole e outro de caipirinha de maracujá?

É aí que surge o verdadeiro prazer do não-ser. Um corpo perfeito é uma obra de arte a ser absorvida. Nós, que não o temos, somos admiradores, curadores, amantes de sua beleza. Corpos perfeitos, devidamente marcados por sungas e biquínis, são convites ao olhar, ao deleite, à discussão; assim como um Picasso ou Dalí. Praias e piscinas são museus naturais, expondo o que há de belo e de novo. Boutique de carnes finas e bronzeadas. Excitam. Aguçam. Reinam.

Não faz parte de minha proposta discutir o quão bem faz à auto-estima ter um corpo escultural. Só estes nobres esforçados sabem o quanto sofreram para chegar até ali, o quanto pouparam-se, o quanto esforçaram-se. São artistas colhendo o fruto de um ano inteiro de trabalho duro. O verão é a vernissage dos corpos.

Um artista e sua obra, porém, não fazem sentido sem o público. Ninguém trabalha meses em algo se não for para exibi-lo, entregá-lo aos leões para que estes o devorem. O ego de um artista jamais estará completamente inflado se não houver resposta, seja ela boa ou ruim. O silêncio está para o artista como a água está para o fogo.

Por isso contento-me, e até empolgo-me, em ser platéia. À platéia reservam-se os maiores prazeres: o riso, as lágrimas, o êxtase, os aplausos e as vaias.

A euforia de despertar um desejo jamais será maior do que a de ter um desejo despertado.

E que assim seja até a chegada do outono.